Hoje vamos falar um pouco sobre um incrível trabalho de desenvolvimento da escalada em rocha na região de Santa Lúcia do Piaí, um dos principais distritos de Caxias do Sul. Confesso que quando comecei a pensar no que escrever fiquei bastante ansioso e apreensivo, uma vez que houve pessoas que contribuíram direta e indiretamente para que os setores pudessem ser abertos. Então espero não ter deixado ninguém de fora e vou citar o nome de cada um que dedicou um pouco do seu precioso tempo para colaborar com as aberturas das vias. O texto não está e ordem cronológica, por isso deixamos apenas a informação do ano no final de alguns trechos.

Localizado nas lindas encostas da Serra Gaúcha, esse vale é cortado pelo rio Cara-Piaí e seus afluentes, com paisagens de tirar o fôlego e repleto de lindas cachoeiras, vegetação exuberante e rica fauna nativa, além claro de inúmeras formações rochosas das mais variadas formas e tamanhos, proporcionando ótimas escaladas nas modalidades boulder, esportiva e tradicional, além de lindas caminhadas e banhos de rio.

Leco na abertura da via “A arte do nada” – Setor Camandulli

Por volta de 2005 alguns amigos abriram cerca de 3 vias bem difíceis numa das falésias, porém foi temporariamente abandonado por não ter lugar seguro para deixar os carros e de não terem descoberto um acesso fácil para chegar na base da pedra.

 Em 2015 (10 anos depois) junto com o amigo, sócio e escalador Dioni Capelari, eu e minha esposa Carin Marchiorato adquirimos um terreno rural nessa região, já vislumbrando um projeto audacioso de longo prazo onde estava incluso o desenvolvimento da escalada, uma vez que o lugar demonstrava um enorme potencial para a prática do esporte.

Marcus Kuquert equipando uma via no setor “Camandulli”.

Iniciamos o processo com visitas e longas conversas com a comunidade local, nos apresentando e nos colocando à disposição da vizinhança. Quem conhece a origem da colonização da região, sabe que demanda tempo e conversa para conquistar a confiança dos moradores desses lugares, o que é imprescindível para a abertura dos setores de escalada, pois a maioria das falésias se encontram dentro de propriedade particular, e por isso é muito importante zelar pelo respeito, cuidado e gentileza para que os setores continuem abertos.

Foi então que um belo dia na casa de um vizinho próximo, depois de uma boa conversa, o mesmo fez questão de nos levar em uma caminhada que dá acesso à Cachoeira São Nicolau (60m), uma das mais lindas quedas d’água da região. Ao descer a trilha nos deparamos com uma linda formação rochosa que “encheu os olhos” e o proprietário das terras (Sr. Fioravante) não entendia o porquê de tanto entusiasmo. Como ele mesmo disse: “Não dá pra plantar e produzir nada nesses perau”. Foi então que começamos a falar sobre o montanhismo, as escaladas e sobre nossa história e envolvimento com o esporte.

Algumas semanas depois adquirimos algum material (200 chapeletas, paradas e parabolts) através de recursos próprios e dos cursos de escalada ministrados por nossa empresa – CAEL ECO ADVENTURE. Nessa primeira investida, foram abertas 15 vias nesse setor que batizamos carinhosamente de “Fioravante”, uma singela homenagem e agradecimento ao proprietário das terras que nos mostrou o local e autorizou a prática da escalada. As vias foram abertas com o empréstimo da furadeira do nosso querido amigo e escalador Bruno Milani, de Bento Gonçalves (da empresa IMBM Alpinismo Industrial) que deixou conosco durante um período de férias dele. Além do empréstimo da furadeira, tivemos a participação nas conquistas de algumas vias dos amigos Nestor Paim, Samir Khalil Thalji, Natália Eschiletti e Marcus Kuquert. Esse ano era 2017.

Depois disso, nós tivemos que investir numa furadeira melhor e mais nova, pois a que tínhamos era muito pesada e “antiga”, e isso nos limitava muito no processo de desenvolvimento das vias. Foi então que nossa amiga e parceira Helen da loja PATOS DO SUL AVENTURA, nos ofereceu uma ótima condição de compra numa furadeira nova e muito boa e que foi fundamental para acelerar esse processo.

Dioni no processo e no “perrengue”.

Algum tempo depois em uma das caminhadas com a Carin, fomos dar uma volta no Grutão dos Índios (atualmente Grutão Eco Parque) e aproveitar para dar um “oi” e ver como estava o Sr. Gabriel Bertin (proprietário do local), uma pessoa adorável e que se tornou um grande amigo nosso. Nesse passeio dentro da área do parque, resolvemos descer uma trilha antiga que nunca havíamos passado e para surpresa nossa, “descobrimos” alguns blocos de pedra muito bons para a prática de boulder, além de se deparar com uma linda falésia que estava “escondida” no meio da vegetação. Foi um momento de euforia e alegria, pois ambos mostravam um grande potencial e muita qualidade para as escaladas.

Leco na abertura de via no Setor “Campo dos Bugres”, dentro do Grutão EcoParque.

 Inicialmente chamamos um grande amigo que é responsável por inúmeras conquistas de vias na região de Caxias do Sul, e assim como nós adora a prática do boulder, o querido Guilherme Mondadori Comim, que não mediu esforços para melhorar a base, rolar grandes pedras e outros objetos que mostravam perigo em caso de queda. Foram dois dias intensos de enxada, picareta e muito trabalho para deixar o bloco pronto para a diversão da galera, e batizamos de “Bloco da Mamangava”, com uma face levemente negativa e com mais de 15 “problemas” de boulder que variam entre V0 e V9.

Alguns dias depois iniciamos o processo de abertura das vias nesse local e contamos com a ajuda dos amigos e escaladores Bruno Susin e Gustavo Munaretto nas três primeiras vias do setor. Ao longo das semanas seguintes eu e Carin continuamos com as conquistas das vias. Nesse setor tivemos participações importantes com o Guilherme Comim e com nosso querido amigo Fernando Henrique (Nando Grillo) de Laguna, que colaborou também com todas as proteções da via “Black or White”. As demais vias foram abertas por mim (Leco) e Carin Marchiorato, também com recursos próprios. Esse período compreendeu os anos de 2017 e 2018 e o setor foi batizado de “Campo dos Bugres”, um dos primeiros nomes do que hoje é a cidade de Caxias do Sul.

Bloco Mamangava

Logo que finalizamos a última via aberta nesse setor, retomamos os trabalhos no antigo setor chamado de “Camanduli”, aquele que citamos no início desse texto que foi aberto em 2005 e ficou “desativado” ao longo de todos esses anos. Descobrimos um acesso melhor que chega por cima da falésia e sem grandes dificuldades. Esse setor é uma das maiores promessas da escalada esportiva da região, com potencial de mais de 120 vias só nessa “parede”. A formação rochosa é realmente incrível, imponente e com todo tipo de inclinação (desde positivo até grandes tetos), textura, formas de pegas e altura (varia de 15 a 40 metros). Havia somente 3 vias finalizadas, sendo todas projetos ainda, com grau de dificuldade bem elevado. Contamos novamente com a ajuda do nosso amigo Guilherme Comim e abrimos duas vias novas com cerca de 30 metros que ficaram lindas. Dias depois recebemos o amigo Tiago Zucchi de Porto Alegre que ajudou na conquista de mais uma via nesse setor. Esse ano é 2019.

Carin equipando mais uma via no setor “Campo dos Bugres”.

Na estrada que dá acesso ao setor Camandulli, podemos perceber diversos blocos “escondidos” no meio da floresta. Um certo dia conversando com os amigos Dioni Capelari e Maicon Vieira, os mesmos haviam comentado sobre esses blocos, e que haviam explorado um pouco o local para ver o que encontravam. Então ficamos animados e pouco tempo depois eu (Leco) e Carin fomos fazer um reconhecimento do local. Ficamos impressionados com a quantidade e diversidade de pedras espalhadas em um espaço relativamente pequeno, numa leve encosta do morro. Iniciamos a abertura dos boulders com limpeza das agarras, demarcação de trilhas, melhoria da base de alguns blocos e em pouco tempo já havíamos aberto cerca de 30 linhas de boulder que variam de V0 a V9 (com projetos a realizar), e ainda existem alguns blocos que não foram explorados. Subindo essa leve encosta, chegando no “último” bloco nos deparamos com uma “nova” falésia que se mostrava promissora, mas como estávamos muito atarefados com outros setores e com os boulders, deixamos para outra oportunidade. Nesse mesmo ano, eu e Dioni Capelari fomos até a falésia equipado de peças móveis para escalar uma linda fenda que tínhamos visualizado na primeira visita ao setor. Escalamos ela até onde conseguimos e na hora de colocar uma parada com proteção fixa, a bateria da furadeira estava sem carga, foi uma falha nossa de não ter se certificado desse detalhe e tivemos que desescalar a via toda. Depois disso nos ocupamos com outras atividades na região e novamente deixamos o setor para outra oportunidade. Esse ano era 2017.

Carin na abertura de via no setor Primavera.

Na primavera de 2019 iniciamos os trabalhos de abertura desse novo setor, com duas vias abertas pela Carin. O setor acabou se chamando “Primavera” por ter iniciado bem na semana de mudança de estação.

No carnaval de 2020 recebemos em nossa casa os escaladores e amigos Luis Henrique Cony e Tiago Zucchi, ambos de Porto Alegre, que vieram no intuito de conhecer as escaladas (no caso do Cony) e fazer um “intensivo” na abertura de vias no novo setor Primavera. Em três dias abrimos juntos 7 vias novas que ficaram muito legais. Estávamos todos muito empolgados com os setores em desenvolvimento e com o potencial de se tornar um grande complexo de escaladas.

Fernando Henrique (Nando Grilo) na abertura da incrível via “Pererecas Bacon” de 33 metros.

Já havíamos organizado um “Encontro de Escalada” na região que estava programado para o final de março daquele ano. Seria um evento bem simples, com a única intenção de apresentar e promover as escaladas daquela região. Seria um ano de muitas conquistas, mas fomos surpreendidos com a pandemia mundial do COVID-19 e tivemos que parar com os trabalhos e seguir as recomendações de isolamento social e também evitar qualquer risco de acidente para não ter que parar em algum hospital ou algo similar, uma vez que a área da saúde sofreria uma grande demanda de pacientes com essa nova onda de infectados.

Leco equipando mais uma via no setor “Camandulli”.

Com a baixa nos casos de óbitos e melhora nos números da pandemia, em 2021 começamos a planejar o retorno das conquistas de novas vias e desenvolvimento das escaladas ali na região. Porém nosso material (chapeletas e demais proteções) haviam terminado e o valor dos mesmos estava muito mais caro do que quando adquirimos da última vez. Já tínhamos gastado um bom dinheiro com as vias, sendo quase 300 chapeletas (normais e com argola), parabolts, brocas, furadeira nova, desgaste de equipamentos e muitos dias de trabalho, tudo isso com recursos próprios.

Carin em ação numa das vias do setor “Primavera”.

Foi então que numa conversa habitual, nosso amigo Marcus Vinicius Kurket sugeriu em fazer um “vaquinha” on-line. Achamos a ideia muito boa e seria uma ótima oportunidade para a comunidade escaladora poder ajudar e contribuir de forma indireta com a continuação do desenvolvimento da escalada na região. Me propus a redigir um texto legal para falar brevemente do que estávamos fazendo e planejando, e o Marcus ficou com a parte de criar a vaquinha no site (já que não sou bom com tecnologia). Havíamos a pretensão de arrecadar os valores num prazo longo (cerca de 6 meses), mas para nossa surpresa o valor foi arrecadado em pouco mais de 2 semanas. Ficamos muito felizes com o resultado rápido desse movimento, felizes em ver que realmente o pessoal abraçou a causa e colaborou de forma tempestiva. Foram adquiridas 400 chapeletas normais e 80 chapeletas com argolas. Depois do pedido ao fabricante, ainda demorou quase 2 meses para receber a encomenda, devido à falta de matéria-prima para a fabricação das mesmas.

Marcus Kuquert na abertura de uma via, setor “Camandulli”.

Com o material na mão, retomamos as aberturas de vias no setor Primavera e em seguida focamos novamente no setor Fioravante, onde apresentava possibilidade de vias mais “democráticas”, sendo a maioria entre sexto e sétimo graus. Atualmente o setor Fioravante conta com 31 vias e com espaço para muito mais.

Com esse setor já bem desenvolvido, nossos olhos e esforços se voltaram novamente para o setor Camandulli, pela qualidade e grandeza do mesmo. Foi então numa vinda do amigo Fernando Henrique, de Laguna, que trouxe muita empolgação e uma vasta bagagem de experiência em conquistas de vias, que reiniciamos os trabalhos no lugar. Juntou-se a nós o amigo Marcus Vinícius Kurket e abrimos mais 5 vias no setor, sendo duas delas com mais de 30 metros de escalada.

Marcus, Nando, Leco na organização dos equipamentos de conquista.

Até a publicação desse texto, havíamos conquistados cerca de 70 vias nessa região, distribuídos em 5 setores diferentes, e ainda com os trabalhos em andamento.

Não poderia deixar de citar e agradecer também nosso querido amigo Marcos da ARIENTI EQUIPAMENTOS que ao saber do nosso trabalho, fez contato conosco e nos apoiou com diversos equipamentos para conquista de vias.

Decidimos escrever esse relato para que fique registrado na história da escalada da região esses trabalhos, e que não esqueçamos de cada um que de alguma forma ajudou para que tudo isso acontecesse. Citamos os nomes das pessoas que estiveram junto conosco nesse processo de abertura das vias, mas sabemos que há muito mais pessoas por trás dessa história que de alguma forma ou outra ajudaram no desenvolvimento das escaladas nessa região. E novamente pedimos desculpas se esquecemos de alguém, mas demoramos muito tempo para escrever o relato e pode ser que tenhamos deixado de citar nomes importantes dentro desse processo, e faremos as edições e erratas caso seja necessário.

Segue abaixo um croqui prévio do setor “Fioravante”, gentilmente elaborado e cedido pelo amigo e escalador, Igor da Silveira Machado.

One response

  1. Incrível esse trabalho Leco, e legal deixar registrado o processo Lara dar uma dimensão da contribuição pra comunidade escaladora. Parabéns a todos os envolvidos!

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